O Carrinho




O Carrinho

Ganhei um carrinho de presente. Coloquei-o sobre minha mesa de trabalho. Olho para ele quando escrevo e escrevo os pensamentos que ele me faz pensar. Não são todos os objetos que têm este poder de fazer pensar. A caneta, o grampeador, a lâmpada, a cadeira, objetos à minha volta: eu os uso automaticamente; eles não me fazem pensar. É que eles só estão ligados ao meu corpo, mas não à minha alma. Mas o carrinho é diferente. Bastou que eu visse a primeira vez para sentir uma emoção, um movimento na alma. Eu o reconheci como morador do mundo das minhas memórias. Ele me fez lembrar e sonhar. Fez cócegas no meu pensamento. Meu pensamento começou a voar. O que eu vejo nele não é nada comparado àquilo que ele me faz imaginar. Sonho. Os teólogos medievais diziam que o sacramento é um sinal visível de uma graça invisível. O carrinho é um sacramento: sinal visível de uma felicidade adormecida, esquecida. Volto ao mundo da minha infância.
Uma lata de sardinha. A tampa foi dobrada inteligentemente, e assim se produziu a capota. As rodas foram feitas de uma sandália havaiana que não se prestava mais a ser usada. Os eixos, dois galhinhos de arbusto. E ei-lo pronto! Um carrinho, construído com imaginação e objetos imprestáveis.
Fosse um carrinho comprado em loja, e eu nada pensaria. Seria como meu lápis, o meu grampeador, a minha lâmpada, a minha cadeira. Mas basta olhar para o carrinho para eu ver o menino que o fez, menino que nunca vi, menino que sempre morou em mim. Fico até poeta: faço um hai-kai:
uma lata vazia de sardinha,
uma sandália havaiana abandonada:
um menino guia seu automóvel...
Os entendidos dirão que o hai-kai está errado. De fato, não sei fazer hai-kais. Sou igual ao menino que não sabia fazer automóveis, mas a despeito disto os fazia. Meu hai-kai se parece com o carrinho de lata de sardinha e rodas de sandália havaiana.
Sei que o menino é pobre. Se fosse rico teria pedido ao pai, que lhe teria comprado um brinquedo importado. Dinheiro é um objeto que só dá pensamentos de comprar. A riqueza, com freqüência, não faz bem ao pensamento. Mas a pobreza faz sonhar e inventar. Carrinho de pobre tem de ser parido. A professora – se é que ele vai à escola – deve ter notado que ele estava distraído, ausente, olhando o vazio fora da janela. Falou alto para chamar sua atenção. Inutilmente. Ela não percebeu que distração é atração por um outro mundo. Se os professores entrassem nos mundos que existem na distração dos seus alunos eles ensinariam melhor. Tornar-se-iam companheiros de sonho e invenção.
Penso que o menino devia andar lá pela favela, olhos atentos, procurando algo, sem saber direito o quê. Até que deram com a lata de sardinha jogada no lixo. Foi um momento de iluminação. A lata de sardinha virou uma outra coisa. O menino virou poeta, entrou no mundo das metáforas: isto é aquilo. Ele disse: “Esta lata de sardinha é o meu carro...” Fez aquilo que um fundador de religiões fez, ao tomar o pão e dizer que o pão era seu corpo. E a lata de sardinha ganhou um outro nome, virou outra coisa. O menino, sem saber, executou uma transformação mágica. Todo ato de criação e magia. O menino dobrou a tampa e se sentou ao volante.
Faltavam as rodas. Pensei que muitas vezes me defrontei com problema semelhante, quando menino. Mas’ na minha infância a solução já estava dada. O leite vinha em garrafas bojudas de boca larga, que eram fechadas com tampas metálicas semelhantes às tampinhas de cervejas, só que muito maiores. Era só pegar as tampas, e o problema estava resolvido. Mas os tempos são outros. O menino teria de fazer suas rodas, se quisesse andar de automóvel. Se tivesse uma serra tico-tico poderia fazer rodinhas de um pedaço de compensado abandonado. Mas é certo que tal ferramenta ele não tinha. Pois se tivesse, teria feito. Suas ferramentas: uma faca, subtraída da cozinha, um prego para fazer os buracos, e uma pedra, à guisa de martelo. O material deveria ser dócil às ferramentas que possuía. Seria fácil fazer rodas de papelão. Mas as rodas se desfariam, depois de passar pela primeira poça de água. Seus olhos e pensamento procuram. E aquilo que calçara pés se transformou em calçado de automóvel. Quatro buracos na lata de sardinha, dois galhinhos de árvores e ei-lo pronto: o carrinho!
O menino sabia pensar. Pensava bem, concentrado. É sempre assim. Quando o sonho é forte, o pensamento vem. O amor e o pai da inteligência. Mas sem amor todo o conhecimento permanece adormecido, inerte, impotente. O menino e o seu carrinho resumem tudo o que penso sobre a educação. As escolas: imensas oficinas, ferramentas de todos os tipos, capazes dos maiores milagres. Mas de nada valem para aqueles que não sabem sonhar. Os profissionais da educação pensam que o problema da educação se resolverá com a melhoria das oficinas: mais verbas, mais artefatos técnicos, mais computadores. (ah! o fascínio dos computadores!). Não percebem que não é aí que o pensamento nasce. O nascimento do pensamento é igual ao nascimento de uma criança: tudo começa com um ato de amor. Uma semente há de ser depositada no ventre vazio. E a semente do pensamento é o sonho. Por isto os educadores, antes de serem especialistas em ferramentas do saber, deveriam ser especialistas em amor: intérpretes de sonhos.
O menininho sonhava. Como Deus, que do nada criou tudo, ele tomou o nada em suas mãos, e com ele fez o seu carrinho. Imagino que, também como Deus, ele deve ter sorrido de felicidade ao contemplar a obra de suas mãos...

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